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5 de junho de 2018

Tempo de Leitura: 3 minutos

Espelhos e Rainhas


“Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu? Ao que o espelho lhe respondia: não, Rainha, vós sois a mais bela.”

Quem nunca leu, pelo menos já ouviu falar: Branca de Neve e os Sete Anões. A Rainha, uma das vilãs mais terríveis dos contos populares. E não, essa historia não foi criada por Walt Disney.

A versão pasteurizada de Disney pouco lembra a historia mais cruel e sangrenta coletada pelos Irmãos Grimm, que por sua vez é uma versão, ao contrário do que muitos pensam, mais “amenizada” que as versões orais populares registradas desde sempre, bem antes de cogitar-se a ideia de que um conto maravilhoso pudesse ser especificamente destinado a crianças.

Há versões (inclusive a dos Grimm, no manuscrito de 1810 e na edição de 1812) em que é a mãe, a partir de determinado momento da historia, quem submete Branca de Neve a maus tratos e à morte.  Também não há anões. A madrasta surgiu nas versões em que possivelmente o narrador era uma mulher que era mãe e o público, seus filhos e netos. E os anões, nas versões germânicas mais tardias, já que não apareciam nas italianas e francesas, bem mais antigas e de cujo folclore não faziam parte.

O espelho, introdução também dos Irmãos Grimm, aponta mais significativamente para o motivo real da Rainha de perseguir de forma assassina sua enteada. Ao contrário do que se julga superficialmente, não é apenas a vaidade  que move a vilã. É, antes de tudo, medo e autopreservação. Sua posição no castelo foi alcançada por conta de sua beleza/juventude e deve ser mantida a todo custo, para sua sobrevivência. O espelho mágico a informa, dia após dia, da estabilidade de sua situação mas, a partir do momento em que ele passa a mencionar Branca de Neve, a madrasta percebe que começou sua derrocada.

Branca de Neve atua, também, como uma espécie de espelho – o reverso do espelho da Rainha- refletindo tudo o que a mulher mais velha está deixando de ser. A cada dia ela se torna mais adorável, doce e bonita, e a madrasta vai se tornando exatamente o oposto.

A vida nunca foi fácil para a maioria das mulheres, como segue não sendo hoje em dia. Para as mulheres mais velhas, então, não restavam muitas opções. Nas sociedades europeias dos séculos XVIII e XIX, as viúvas, ou “solteironas” (que não foram capazes de “conseguir um marido”) não tinham direito a nada, viviam na indigência ou de favores de outros membros da família, geralmente integrando-se à família de um filho ou filha e submetendo-se à liderança da mulher adulta mais jovem, geralmente a nora ou talvez a própria filha ou uma cunhada.

Que poder tinha uma mulher velha? Relegada à segunda classe na sociedade, só lhe restava assumir um de dois papeis: bruxa ou avózinha boa. Sua força e seu controle passavam a ser exercidos nos espaços periféricos do cenário social, como uma pequena sombra, que submete pela maldade ou cativa pelo cuidado.

Não só nas sociedades do passado, mas hoje em dia também, não há muitas opções para as mulheres que envelhecem. A valorização da juventude e da beleza pela sociedade, como símbolos de vida plena, pode tomar rumos muito perversos e obscuros, dependendo  da estrutura emocional e psíquica de cada mulher ou seja, dos “espelhos” os quais consulta: a mulher obcecada por sua própria imagem, a mãe que compete com a filha por atenção, a mulher que assume todas as tarefas da casa ou do trabalho para si, para que as coisas não “funcionem” sem ela ou, ao contrário, as mulheres que no ambiente doméstico não assumem tarefa alguma e apenas “administram” a casa e a família como uma empresa, pois envolver-se nessas tarefas seria admitir a passagem do tempo. E assim são muitos os exemplos dos desvios a que os espelhos podem levar.

É preciso atenção para não cair nas artimanhas de um espelho mágico: talvez precisemos aprender a fazer as perguntas certas. Talvez devêssemos nos preocupar menos em manter uma posição sobre um terreno tão frágil como a beleza e mais em construir a experiência que irá nos sustentar quando a beleza e a juventude acabarem.

Talvez ainda devêssemos simplesmente não fazer pergunta alguma, apenas olhar atentamente e tentar vislumbrar, lá no fundo do espelho,  aquela menina que nos sorri e acena e que irá nos mostrar o caminho verdadeiro sempre que a vida parecer um labirinto. Talvez assim, nesse exercício de encontrar e valorizar o ser humano real que mora dentro de nós, possamos, finalmente, deixar Branca de Neve em paz.



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