Violência doméstica


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7 de dezembro de 2020

Tempo de Leitura: 7 minutos

Violência doméstica


Matéria publicada na edição de Novembro/2020

Estamos em 2020, período de pandemia, e ainda precisamos falar (muito) a respeito desse tema. A advogada Maiaja Franken de Freitas é quem nos ajuda nessa tarefa

A caracterização do que se enquadra como violência doméstica é obtida a partir da Leitura da Lei número 11.340, de 07 de agosto de 2006, conhecida popularmente como “Lei Maria da Penha”.  O caso da farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, ficou conhecido internacionalmente, em 1998, quando foi denunciado para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA). Porém, o Estado Brasileiro permaneceu omisso, não tendo se pronunciado em nenhum momento durante o processo. Em 2001, o Estado Brasileiro foi responsabilizado por negligência, omissão e tolerância em relação à violência praticada contra as mulheres brasileiras. A história de Maria da Penha foi muito mais que um “caso isolado”: ela demonstrou o que acontecia sistematicamente no Brasil, sem que os agressores fossem punidos.

Diante disso, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entre outras recomendações ao Estado Brasileiro, que o caso de Maria da Penha fosse tratado como de violência contra a mulher em razão de seu gênero, ou seja, o fato de ser do gênero feminino reforça não só o padrão recorrente desse tipo de violência como, também, acentua a impunidade dos agressores. E, diante da falta de medidas legais e ações efetivas, como acesso à justiça, proteção e garantia de direitos humanos a essas vítimas, formou-se, em 2002, um Consórcio de ONGS Feministas, para a elaboração de uma lei de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Após debates com o Legislativo, o Executivo e a sociedade, o Projeto de Lei número 4.559/2004 da Câmara dos Deputados chegou ao Senado (Projeto de Lei de Câmara número 37/2006) e foi aprovado por unanimidade em ambas as casas. Em 07 de agosto de 2006, o então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei número 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha. Esse breve histórico é importante, porque embora se veja os números, gritantes, da violência doméstica, ainda existem pessoas que fazem a pergunta: “Mas por que uma lei específica para proteger pessoas do gênero feminino?” A explicação, suscintamente, está aí em cima: porque essas pessoas morrem, pelo simples fato de serem do gênero feminino.

Dito isso, segundo a Lei Maria da Penha, em seu artigo 5º, violência doméstica e familiar contra a pessoa a mulher se caracteriza como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou matrimonial”. O conceito de violência doméstica e familiar, portanto, é de suma importância, na medida em que: a) se verifica a aplicação para pessoas do gênero feminino (abrangendo, assim, também a proteção às mulheres trans), b) a proteção quanto a outras formas de violência, que não “apenas” (sem aqui minimizar o impacto desta espécie) a violência física.

É fundamental, portanto, que toda a sociedade entenda, que a exemplo de pautas como o racismo, a questão da violência doméstica é um problema de todos e todas, e que uma ação conjunta, de políticas públicas e de mudanças básicas, desde a educação, são fundamentais para modificarmos os números atuais da violência.

Quais são os diferentes tipos de violência doméstica praticados?  Novamente, a Lei Maria da Penha, em seu artigo 7º, prevê que são formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras, a violência física, a violência psicológica, a violência sexual, a violência patrimonial e a violência moral. A legislação, no caso, se mostra inovadora e protetiva, uma vez que traz um rol exemplificativo do que se caracteriza como violência doméstica e familiar contra a mulher. Veja-se, por exemplo, que com as novas tecnologias, algumas não existentes à época da promulgação da lei, é possível a utilização do caput do artigo 7º para fazer cessar determinada forma de violência, como a chamada “Porn Revenge”, em que o agressor tem fotos ou vídeos íntimos da vítima e os divulga na rede mundial de computadores, como uma forma de se “vingar” pelo fim do relacionamento, embora possa-se entender que essa conduta também poderia se enquadrar na chamada violência moral. Mas o exemplo é utilizado, aqui, para que se verifique que o artigo 7º, que trata das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher é, meramente, exemplificativo.

De que forma a pandemia contribuiu para o aumento dos casos de violência doméstica? Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)[1], os casos de feminicídio cresceram 22,2%, entre março e abril/2020, em 12 Estados do País, comparativamente a 2019. Entre os fatores que explicam o aumento dos casos de violência doméstica e familiar durante o período da pandemia vivenciada pela COVID-19 estão a convivência mais próxima dos agressores, que no novo contexto, podem mais facilmente impedir as vítimas de se dirigir a uma delegacia ou a outros locais que prestem socorro, como centros de referência especializados, ou, mesmo, canais alternativos de denúncia, como telefone ou aplicativos. Por estes motivos, especialistas consideram que as estatísticas se distanciam da realidade vivenciada pela população feminina quando o assunto é violência doméstica, pois em condições normais, já há a marca da subnotificação (ou seja: ocorrência das situações de violência sem o respectivo registro da ocorrência, perante a Autoridade Policial).  Atenta a isso, a Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, viabilizou no início da pandemia, a possibilidade de registro de ocorrências por violência doméstica on-line (https://www.delegaciaonline.rs.gov.br/dol/#!/index/main ) quando não houver agressões físicas.

Da mesma forma, a sociedade civil se organizou.  Um exemplo, é a startup paranaense Âmago.app, que distribui botões de pânico portáteis gratuitamente, que funcionam sincronizados com o aplicativo, no smartphone da mulher que o está utilizando. Quando acionado, informa a localização da mesma via SMS (de maneira secreta) somente para pessoas de sua confiança, avisando que ela está em situação de risco ou violência. O envio do botão Âmago é patrocinado por empresas parceiras, engajadas com a causa, entregue de modo gratuito para mulheres cadastradas na plataforma https://www.amago.app/ .

Quando a pessoa que sofre um caso um caso de violência doméstica deve buscar auxílio? E de que formas ela pode encontrar auxílio para sair da situação que enfrenta? Uma premissa básica, quando se aborda o assunto acerca da violência doméstica é eliminarmos a ideia de que “a mulher gosta de apanhar”, ou que “está na relação violenta porque gosta”. Nenhuma mulher, nenhum ser humano gosta de viver em uma relação sob violência. Conforme Leonore Walker, trabalhada de forma muito didática no site do Instituto Maria da Penha[2], a violência doméstica tem várias faces e especificidades, sendo que, no entanto, as agressões cometidas no contexto conjugal são cometidas dentro de um ciclo, que é constantemente repetido. É o que chamamos de ciclo da violência. Resumidamente, o Ciclo da Violência é composto de 3 fases: Fase 1, onde há o aumento da tensão, mostrando-se o agressor irritado, tenso e brigando por questões banais. Ainda que a mulher tente acalmá-lo, ele encara isso como condutas provocativas. Normalmente, a vítima tende a negar que isso está ocorrendo com ela. A tensão pode durar dias ou anos, aumentando cada vez mais. Geralmente, levará à fase 2. Fase 2, ato de violência, correspondendo à explosão do agressor. Aqui a violência vai se manifestar de maneira física, psicológica, moral, patrimonial, verbal, etc. Esta fase causa um impacto grande na vida da mulher que está na situação de vítima de violência, porque muitas vezes ela tem consciência de que o agressor está fora de controle, e que seus atos têm um poder destrutivo grande em relação à sua vida mas, no entanto, seu sentimento enquanto mulher diante de toda a situação é de paralisia e impossibilidade de reação. Após essa fase explosiva e de violência externada, vem a Fase 3, que é conhecida por alguns como a fase de lua de mel, em que o agressor se diz arrependido, e passa a ter comportamentos carinhosos. A mulher, diante disso, se sente confusa e pressionada a manter o relacionamento, especialmente quando tem filhos.

O Ciclo da Violência, ainda que resumido, é muito importante de ser compreendido, porque a mulher que está na situação de vítima fica aprisionada, sente-se incapaz muitas vezes de rompê-lo. E, como diz Maria da Penha em suas palestras “cada mulher sabe o momento de romper o ciclo”.

Então, é fundamental que a mulher que decide romper o ciclo, procure uma pessoa de confiança para ouvi-la, sem julgamentos. Paralelo a isso, procure a autoridade policial. Em Passo Fundo, RS, temos a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher, a qual atualmente atende na Rua Nascimento Vargas, 153, Centro (ao lado do Campo do Quartel). Na minha opinião, é fundamental que a mulher seja acompanhada, desde o início por uma/um profissional da Advocacia, pois reiteradamente ouvimos mulheres que estão na situação de vítima dizerem “Mas ele me falou que vai tirar nossos filhos…Mas ele me falou que vou morar embaixo da ponte…Mas ele me disse que vou ficar sem nada”, e veja, além disso se caracterizar, claramente, como violência psicológica, é fundamental que a mulher tenha orientação jurídica a respeito de cada um desses pontos. Também é importante que a mulher procure atendimento psiquiátrico ou psicológico, para auxiliá-la a retomar as rédeas de sua vida, assim como para que ela consiga se reencontrar com ela mesma, inclusive percebendo que ela não é tudo aquilo que passou anos (por exemplo) ouvindo o agressor dizer que ela era.

De que forma a advocacia lida com os casos de violência doméstica? Não tenho como falar da Advocacia em geral. Portanto, vou dar o exemplo de como lidamos no escritório do qual eu faço parte. A premissa básica é o atendimento da cliente sem qualquer julgamento. A mulher que está na situação de vítima de violência (pois ela tem condições de sair dessa situação) não precisa de ninguém para julgá-la. Ela precisa de uma escuta com empatia, e com entendimento do que ela terá direito, a partir do que a legislação lhe assegura. Analisa-se quais medidas protetivas serão necessárias, trabalhando em conjunto com a parte do Direito de Família, porque as questões ligadas a violência doméstica, não raro, estão umbilicalmente ligadas ao Direito de Família. Geralmente, agressor e vítima tinham família constituída, com filhos, então é indispensável que as medidas da Lei Maria da Penha (ao menos na Comarca de Passo Fundo, em que não há Vara Especializada para esse tipo de processo), sejam pensadas e trabalhadas com o olhar para o Direito de Família, pois além da mulher que está na situação de vítima, é necessário pensar, também, nas crianças/adolescentes envolvidos naquele contexto de violência. Ainda, entendemos que é fundamental um tratamento multidisciplinar, aconselhando, assim, que a mulher procure auxílio com profissionais da área médica (psiquiatria) ou da psicologia, a fim de que possa se reestruturar diante de sua nova realidade, bem como para acompanhamento para as crianças/adolescentes que viveram até então na situação de violência e que, da mesma forma, necessitarão de apoio para a nova vida.

Muito há, ainda o que evoluir na luta contra a violência doméstica e familiar contra as mulheres, e no combate contra à violência de gênero. No entanto, é fundamental que mulheres, meninas e pessoas do gênero feminino entendam a importância de procurar auxílio, de denunciar os agressores, de registrar a ocorrência de quaisquer formas de violência, na medida em que a Lei Maria da Penha além de diversas medidas protetivas à integridade física e psicológica das mulheres e pessoas do gênero feminino, também traz, como formas de medidas protetivas o comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação, bem como o acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio, denotando, assim, uma preocupação não só com a vítima, como também com o agressor, num entendimento de que o problema da violência doméstica e familiar é, de fato, um problema social, e que deve ser analisado sob essa ótica, para que se resolva efetivamente a questão, ao invés de se ter meramente uma solução paliativa.

[1] https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/violencia-domestica-durante-pandemia-de-covid-19-edicao-02/

[2] https://www.institutomariadapenha.org.br/violencia-domestica/ciclo-da-violencia.html

 

 

Maiaja Franken de Freitas
Advogada –  Sócia do Escritório Freitas Advogados
Presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB Passo Fundo; Coordenadora do Grupo de Trabalho em Defesa das Mulheres da Comissão da Mulher Advogada da OAB Seccional Rio Grande do Sul



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