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5 de junho de 2018

Tempo de Leitura: 2 minutos

As Armadilhas da Terra do Nunca


A Terra do Nunca é um espaço de onde é muito complicado sair. Como um domo invisível que nos aprisiona, essa ilha de fantasias e de desejos  pode ser alcançada, segundo seu habitante mais ilustre, Peter Pan , tomando-se “ a segunda estrela à direita e então direto, até o amanhecer.” Paradoxalmente, o caráter vago de tais coordenadas dá uma ideia muito clara do teor dessa ilha: um lugar que desejamos visitar mas que, ao mesmo tempo, não nos dá garantia alguma de que será o que esperamos.

Ao contrário do que nos é dito de diversas formas, todos os dias, a infância não é necessariamente um tempo idílico de inocência e felicidade plena. Contudo, o representante mais forte dessa ideia paradisíaca, o próprio Peter, é retratado, principalmente por Disney, como um menino travesso e divertido, que tira os irmãos Darling – Wendy, John e Michael – da rotina “chata e sem graça” do ambiente familiar. A oposição entre a infância e a vida adulta que nos é apresentada nessa versão de Peter Pan, faz-nos desejar sair voando por aí e nunca mais voltar para as preocupações do dia a dia.

Peter Pan, de J.M. Barrie, por sua vez, foi publicado inicialmente como “Peter and Wendy”, em 1911, o que condiz totalmente com o conteúdo da história: a protagonista, na verdade, é Wendy.  Suas observações da vida familiar, de sua mãe, do relacionamento de seus pais e de sua relação com Peter Pan e a Terra do Nunca são o foco da narrativa. Sua escolha em voltar para casa e fechar a janela, também. Wendy consegue ver por trás da máscara de heroísmo de Peter. Quando ele insiste que tudo o que quer é ser um menino e divertir-se, ela consegue perceber que é apenas uma fachada. Wendy, a exemplo de sua mãe que visitou a Terra do Nunca antes dela, aprendeu os caminhos para crescer.

Peter é, na verdade, um tirano. A Terra do Nunca é seu playground, e tudo o que nela existe está ali para servi-lo. E quando ele está fora, tudo para em um círculo temporal que só é quebrado com seu retorno. Sua palavra é a lei. Suas aventuras são o que realmente importa, seus desejos são sempre atendidos e os moradores da ilha –  os índios, os Meninos Perdidos, os piratas – só são relevantes pelo papel que desempenham na narrativa do próprio Peter Pan. Até o Capitão Gancho, seu arqui-inimigo, está lá para que o cruel menino se sinta um herói. A existência de Gancho e no final, sua derrocada, é a vitória final de Peter Pan sobre a vida adulta.

Talvez uma grande  imagem que se possa depreender de um conto tão fantástico e bem escrito como Peter Pan é a de que “inocência” não é o mesmo que “bondade”, ao contrário, ela mostra a inexperiência como algo que pode se tornar aterrorizante.

Uma criança que não consegue crescer, perdida na ilha da infância, pode virar um adulto muito cruel e monstruoso.

 

 



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